terça-feira, 4 de setembro de 2007

VÔO 1907- 1 ANO DA TRAGÉDIA


ei, psiu!
ei, meu irmão!
é... você mesmo!
posso lhe pedir um favor?
prometo que não irá demorar muito

peço apenas que feche seus olhos
feche seus olhos só um pouco
depois esvazie sua mente
dos problemas do cotidiano

agora tente confrontar seus sentimentos
sobre aquilo que é inevitável na vida:
a morte... a sua única certeza

não sei, mas sob um certo ponto de vista
pode até parecer algo bom
como quem acha o caminho para o paraíso
ou como quem finalmente verá a face de deus
ou seria só algo que termina, como uma luz que se apaga?

bem, na verdade agora isso não importa e não vem ao caso
mas eu te peço: permaneça com os olhos fechados
delete tudo da sua mente... deixe-a fluir
e vislumbre a forma como você gostaria que isso acontecesse
... como você gostaria que sua hora chegasse

provavelmente você dirá que prefere algo indolor
enquanto dorme, já velhinho
com seus netos e filhos lhe rodeando
e sua companheira de tantos anos lhe segurando a mão

sim, eu também gostaria que fosse desse jeito
mas não é o que eu gostaria que você imaginasse
não agora
pelo contrário...
já que não nos é dada chance de escolhermos como e quando
então peço que você se imagine encarando a dona morte da seguinte forma:

você está na plenitude da sua vida
conquistou tudo o que até então pôde alcançar
constituiu família, criou uma reputação junto aos seus pares
emprego estável, casa na praia, filhos lindos, mulher que te ama

só que agora você está voando
está a 11.000 metros de altura
e então algo de errado aconteceu
a panela de pressão voadora aonde você se encontra
começa a cair de nariz em direção ao solo
você ouve o barulho do metal rangendo, rasgando a loucos 900km/h
rebites se soltando à medida em que a velocidade aumenta
nenhum comando obedece, asas se partem
motores já não existem mais
e o chão se aproxima
- a velocidade terrível da queda, diria lobão

nada que você possa fazer para mudar tal situação
o zumbido do vento abafa os teus gritos
só uma única certeza: você vai morrer
o chão agora se aproxima rápido demais
acentos se soltam enquanto a fuselagem desmancha no ar
(e dizer que num minuto atrás você pedia refrigerante com gelo à comissária)

não há tempo para ligações no celular
ou escrever um bilhete de despedida
o acento flutuante ao qual você está preso não irá lhe ajudar
pois você está indo de encontro à mata fechada
ao chão firme... duro... sólido...
rápido demais
rápido de...

merda! (seria essa a última palavra sussurrada pelos seus lábios?)

e nesse exato instante tudo já era
a dor do seu corpo sendo mutilado
retalhado pelos destroços e pelos galhos das árvores
e depois queimado pelo querosene em chamas
oriundo dos tanques da aeronave é tão grande
que nem se parece mais com dor
e aí, então, já não se sente mais nada
você morreu

simplesmente assim, nada demais
nada que você ou alguém pudesse ter feito
puro destino
tinha que acabar dessa forma
triste
trágica
estúpida

se este esforço de imaginação lhe causou desconforto, desculpe
mas é que às vezes esse tipo de coisa realmente acontece
e às vezes é preciso que 154 pessoas morram dessa triste forma
para lembrarmos o quão frágeis somos
para lembrarmos também de que
tudo aquilo que conquistamos
- o carro e a casa e o status e seja lá o diabo que for -
podem acabar de uma hora para outra
sem que nada possamos fazer contra

melhor começar a pegar leve
melhor começar a se desapegar de certas coisas fúteis
baixar a bola, descer do pedestal
deixar toda a vaidade de lado
pra desfrutar de tudo que realmente tem valor

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